Retrospectiva 2024: o Direito dos Seguros no limiar de uma transformação

Por Thiago Junqueira e Daniel Gelbecke 

Fonte: Editora Roncarati

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I – Introdução

O ano de 2024 foi histórico para o Direito dos Seguros brasileiro. Esta retrospectiva tem como objetivo destacar os aspectos que se sobressaíram nos seguintes cenários: i) legislativo e regulatório; ii) judicial; e iii) acadêmico.

II.I - Cenário legislativo e regulatório

O grande destaque de 2024 foi a aprovação e publicação da nova Lei de Seguros do Brasil (Lei nº 15.040, de 09 de dezembro 2024). Com vigência integral prevista a partir de 10 de dezembro de 2025, a norma revoga, entre outros dispositivos, os artigos 757 a 802 do Código Civil e os artigos 9º a 14 do Decreto-Lei nº 73/1966. Apesar de não poder ser considerada propriamente o “marco legal do seguro” no País, dado que o tema já era objeto de regulamentação[2], não se pode ignorar que a nova legislação – específica e mais ampla sobre a matéria – introduz mudanças profundas no ordenamento jurídico nacional relacionado ao Direito dos Seguros.

Outra mudança legal de grande relevância, já aprovada, mas aguardando sanção presidencial, é a decorrente do Projeto de Lei Complementar nº 143, de 2024. Essa lei alterará, em essencial, o Decreto-Lei nº 73/1966, para regulamentar as sociedades cooperativas de seguros, as operações de proteção patrimonial mutualista, além de tratar do termo de compromisso e do processo administrativo sancionador no âmbito da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP). Com essa medida, projeta-se a criação de um novo ecossistema de proteção contra riscos no Brasil, com elevado potencial de impacto e alcance no setor.

No âmbito processual, destaca-se a alteração promovida no Código de Processo Civil pela Lei nº 14.833, de 27 de março de 2024. Nesse particular, houve a inclusão de um parágrafo único no artigo 499 do CPC, que prevê a faculdade de a seguradora optar pela tutela específica para obrigações de fazer em contratos de seguro, antes que a obrigação seja eventualmente convertida em perdas e danos.

No campo infralegal, foram editadas, até o momento, 13 Circulares pela Susep e 13 Resoluções pelo CNSP. Entre os atos normativos mais relevantes, podem ser referidos:

Circular SUSEP n.º 709, de 12/12 (dispõe sobre o inquérito administrativo no âmbito da SUSEP);

Circular SUSEP n.º 708, de 12/12 (dispõe sobre o registro, a suspensão, o cancelamento e o indeferimento de produtos na SUSEP);

Resolução CNSP nº 473, 27/11 (dispõe sobre a classificação de planos de seguros e de previdência complementar aberta como sustentáveis);

Resolução CNSP n.º 472, de 25/09 (estabelece diretrizes aos Seguros RC dos Transportadores de Carga);

Resolução CNSP nº 471, de 25/09 (dispõe sobre a autoavaliação de risco, solvência e gestão de capital no âmbito das supervisionadas pela SUSEP);

Circular SUSEP nº 700, de 04/04 (estabelece normas sobre processos societários das supervisionadas pela Susep);

Resolução CNSP n.º 464, de 19/02 (dispõe sobre a cobertura por sobrevivência oferecida em plano de seguro de pessoas); e

Resolução CNSP n.º 463, de 19/02 (dispõe sobre a cobertura por sobrevivência oferecida em plano de previdência complementar aberta).

Nos próximos anos, a SUSEP e o CNSP enfrentarão desafios consideráveis para atualizar a regulação em conformidade com a nova Lei de Seguros. Além de realizar uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) efetiva antes da aprovação de novas normas – o que não tem precedente desde a regulamentação desse procedimento pelo Decreto nº 10.411/2020 –, a SUSEP poderia se inspirar na Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e adotar a prática de tomadas de subsídios, coletando sugestões antes de apresentar minutas de atos normativos. Essa abordagem tornaria o processo mais transparente e participativo, permitindo que as partes interessadas contribuíssem desde o início com perspectivas e experiências práticas, enriquecendo a qualidade das normas.

Embora ainda haja espaço para aprimoramentos, é importante reconhecer os avanços já alcançados pela SUSEP, como a criação de grupos de trabalho voltados ao aperfeiçoamento regulatório e a realização de audiências públicas para debater minutas regulatórias apresentadas ao mercado. Essas ações refletem uma postura de abertura ao diálogo e um compromisso com a inclusão dos stakeholders no processo. A expectativa é de que tais práticas sejam fortalecidas, garantindo que a adaptação regulatória à nova Lei de Seguros seja conduzida com cautela, transparência e imparcialidade.

Encerrando esta primeira parte da análise, ressalte-se o lançamento, em julho deste ano, do 3º edital do Sandbox Regulatório da SUSEP. A nova edição trouxe a possibilidade permanente de empresas com projetos inovadores se candidatarem para participar desse ambiente experimental, que oferece barreiras regulatórias reduzidas para a entrada de novos players no mercado.

II.II - Cenário judicial

Em 2024, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisões relevantes, reafirmando seu papel central na interpretação do Direito infraconstitucional no Brasil. A presente análise foca nos julgados dessa Corte, devido à sua influência na formação da jurisprudência e ao impacto direto sobre o setor de seguros.

Os principais destaques do ano incluem:

Afastamento excepcional da necessidade de comunicação prévia ao segurado sobre o atraso no pagamento do prêmio para suspensão ou resolução do contrato: “A dispensa da exigência de comunicação prévia ao segurado deve ser analisada casuisticamente, sendo necessário que o inadimplemento seja substancial e relevante a ponto de justificar a inaplicabilidade da Súmula 616/STJ”.[3]

Seguro agrícola – possibilidade de aplicação do CDC: “No âmbito da contratação securitária, a segurada será destinatária final do seguro e, consequentemente, consumidora, quando o seguro for contratado para a proteção do seu próprio patrimônio, mesmo que vise resguardar insumos utilizados em sua atividade produtiva”.[4]

Seguro D&O – atos dolosos – perda de direitos: “Sendo a empresa quem firmou o contrato de seguro D&O e estando devidamente comprovado o cometimento doloso de atos criminosos que não podem ser abrangidos pela cobertura securitária, o referido contrato de seguro é nulo, não podendo ser aproveitado em favor de quaisquer dos segurados”.[5]

Seguro de vida – comoriência entre o segurado e uma das beneficiárias: “(...) mesmo em caso de comoriência, não há como excluir o direito de representação de menores de idade para fins de identificação dos beneficiários de seguro de vida, quando o contrato é omisso e os beneficiários são definidos pela ordem de vocação sucessória”.[6]

Seguro garantia – prescrição quinquenal quando a administração pública for segurada: “(...) correto o posicionamento do Tribunal de origem que aplicou o prazo quinquenal, previsto no art. 1º do Dec. 20.910/1932. Tal entendimento justifica-se por considerar a existência do interesse público nas contratações entabuladas pela Administração Pública, mesmo quando o pacto for de essência privada, tudo consoante o art. 62, § 3º, I, da Lei 8.666/1993 c/c o art. 1º do Decreto 20.910/1932”.[7]

Acordo firmado pelo segurado sem anuência da seguradora: “Não gera efeitos o acordo firmado entre o segurado e terceiro que importe na diminuição ou extinção do direito do segurador ao ressarcimento das despesas do sinistro, pois do ajuste não participou. 2. Constitui exceção à regra somente a hipótese em que o causador do dano reembolsa integralmente o valor do sinistro ao segurado, tendo em vista a vedação de enriquecimento ilícito”.[8]

Sub-rogação e cláusula compromissória: “(...) a despeito de a sub-rogação legal em favor da seguradora não importar transmissão automática de cláusula compromissória, a ciência prévia da seguradora a respeito de sua existência no contrato objeto de seguro-garantia resulta na submissão à jurisdição arbitral”.[9]

As decisões analisadas refletem a importância e a complexidade das questões envolvendo o setor de seguros, reforçando o papel do STJ na resolução definitiva de seus litígios judiciais.

II.III – Cenário acadêmico

A literatura jurídica especializada em seguros foi enriquecida com obras de peso neste ano que se encerra. Entre os trabalhos coletivos, destacam-se: Direito dos Seguros em Movimento (coords. Ilan Goldberg e Thiago Junqueira); Seguros e Responsabilidade Civil (coords. Camila Affonso Prado, Carlos Edison Monteiro, Flaviana Soares e Nelson Rosenvald); Estudos em Homenagem a Ayrton Pimentel: Temas de Direito do Seguro (coords. Cesar Cassoni, Ricardo Villar, Sandro Raymundo e Tiago Moraes Gonçalves); Aspectos Jurídicos dos Contratos de Seguro - Ano IX (coords. Angélica Carlini e Pery Saraiva); O Mercado de Seguros, Previdência Aberta e Capitalização na Visão do CRSNSP (coord. Adriana de Toledo); Seguros e Resseguros: Aspectos Tributários e Contábeis (coord. Mônica Pereira Coelho); e Seguros de Catástrofes Climáticas – O Plano do Brasil para Desastres (coord. Pedro Guilherme de Souza).

Além disso, obras individuais relevantes também foram publicadas, como: Boa-fé no Contrato de Seguro, de Luiza Petersen; Seguro no Brasil e os Resseguradores Internacionais, de Gustavo León; A Doença Preexistente no Seguro de Vida, de Victor Benes; Seguro D&O, Multas e Penalidades - Evolução Regulatória?, de Bruno Leite de Almeida; Risco na Formação e Execução do Contrato de Seguro, de Leonardo Cocentino; e Curso de Liquidação de Sinistro Incêndio, de José Francisco Fontana.

Abre-se aqui um parêntese para afirmar que esses lançamentos demonstram, ao contrário do que alguns críticos por vezes alegam, que a produção doutrinária brasileira no campo dos seguros é sólida e plural. Isso não significa negar a existência de espaço para avanços metodológicos e de pesquisas, mas ressalta a necessidade de uma reflexão mais cuidadosa – incluindo uma autorreflexão – antes de reproduzir, de maneira superficial, críticas antigas sobre a literatura especializada nacional.

Fechado o parêntese, entre os eventos nacionais, destacam-se os cursos e/ou eventos realizados pela AIDA Brasil, Sou Segura, FGV (incluindo o Instituto de Inovação em Seguros e Resseguros), ENS, Ibmec, ESA, PUC-Rio, CNSeg, IBDS, Academia Brasileira de Direito Civil, Brasilcon, ANSP e o Comitê de Seguros e Resseguros da Amcham. No âmbito internacional, representantes brasileiros estiveram presentes, dentre outros, no 4º Congresso de Direito do Seguro – AIDA Portugal e Almedina; no XII Congresso Intercontinental de Direito Civil, realizado em Coimbra; e no II Congreso Internacional Universitario de Seguros y Reaseguros.

III. Notas finais

O ano de 2024 marcou o primeiro passo de uma fase de transformação no Direito dos Seguros brasileiro, ao mesmo tempo em que reafirmou o protagonismo do setor de seguros e resseguros em questões jurídicas e sociais relevantes.

Um exemplo notável foi a resposta do setor às catástrofes no Rio Grande do Sul, que evidenciou o papel do seguro como ferramenta essencial de proteção financeira, especialmente em momentos de crise. Para aqueles que, de forma hiperbólica, enxergam o contrato de seguro no Brasil como um “pastel de vento”, os R$ 6 bilhões pagos em sinistros no estado são uma resposta contundente.[10]

Para 2025, os desafios não serão menores. A implementação da nova Lei de Seguros e da Lei das Cooperativas e das Mútuas demandará um esforço conjunto de reguladores, seguradores, prestadores de serviços para o mercado, segurados e intermediários, com vista a permitir uma adaptação harmoniosa às mudanças.

A rica produção doutrinária, a participação de juristas em eventos nacionais e internacionais e a atuação de instituições consolidadas no setor, inclusive no oferecimento de seminários, cursos e pós-graduações, evidenciam que os profissionais do Direito dos Seguros no País estão bem posicionados para enfrentar os desafios que se apresentam.

Espera-se que, ao final do próximo ano, possa ser celebrado o progresso alcançado, guiado pelo compromisso com a proteção dos segurados – na medida adequada e em consonância com o seu grau de vulnerabilidade –, a inovação, o equilíbrio nas relações contratuais e a segurança jurídica.

Boas festas!

[1] Thiago Junqueira é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, é Professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e Professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil.

Daniel Gelbecke é Mestrando em Direito, Justiça e Impactos na Economia pelo Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES – São Paulo) e Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV Direito Rio, em Direito Tributário e em Direito Processual Civil. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados.

[2] A respeito da reforma das disposições sobre seguros no Código Civil, proposta neste ano por meio da atualização do próprio diploma, mas que não chegou a ser concretizada, recomenda-se a leitura de: CARLINI, Angélica. Contrato de seguros na revisão e atualização do Código Civil brasileiro. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/403119/contrato-de-seguro-na-revisao-e-atualizacao-do-codigo-civil-brasileiro. Acesso em: 23/12/2024. Diante da recente aprovação da Lei de Seguros, a possibilidade de uma reforma no Código Civil abranger diretamente os contratos de seguro torna-se remota.

[3] STJ, REsp 2157009/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 12/11/2024.

[4] STJ, REsp 2165529/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 08/10/2024. Confira-se, ainda, este trecho do referido julgado: “Trata-se de seguro contratado para a proteção do patrimônio (lavoura) do próprio agricultor. Não integra, portanto, a cadeia de produção agrícola, sendo o segurado caracterizado como destinatário final. (...) Desse modo, seja diante da hipossuficiência do consumidor, seja diante da verossimilhança de suas alegações, deve ser invertido o ônus da prova, na linha do acórdão recorrido”.

[5] STJ, REsp 2149053/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 24/09/2024.

[6] STJ, REsp 2095584/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 10/09/2024.

[7] STJ, AgInt no REsp 2105293/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, j. 24/06/2024.

[8] STJ, AgInt no REsp 1792197/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. 03/06/2024.

[9] STJ, AgInt no AREsp 2273766/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, 3ª Turma, j. 03/06/2024.

[10] Sobre o tema: Enchentes no RS aumentam pagamento de indenizações em 2024, diz CNSeg | CNN Brasil. Acesso em 23/12/2024. Não fosse a limitada penetração desse tipo de contrato, esses números seriam ainda mais expressivos.

(24.12.2024)

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